Antes que a bala encontre o alvo
Por Letícia Santos
Sempre que Sérgio se lembrava da infância, sentia falta de registros. Não ter fotos ou álbuns de recordação o incomodava. Depois de anos, com a chegada de sua primeira filha, a fascinação pela fotografia começou a crescer, Sérgio gostaria que suas filhas tivessem recordações da sua criação.
Mesmo enquanto trabalhava em uma multinacional, passou a carregar uma câmera de bolso - uma Cyber Shot - e registrar momentos do dia a dia. Devido à sua trajetória, como homem preto, criado por mãe solo e vivendo com muitos irmãos na periferia de São Paulo, muitas dificuldades fizeram com que Sérgio passasse a entender e se posicionar sobre questões sociais e políticas. A consequência disso foi o seu interesse no fotojornalismo.
“Fotografia é um ato político”.
A vontade de deixar um legado também moveu Sérgio. Sua história, no entanto, é permeada de injustiça, violência e impunidade. Para contar essa história, é necessário voltar um pouco mais no tempo.
O Movimento Passe Livre (MPL), criado em 2005, se consolidou como parte da militância estudantil. Em 2011, o fotógrafo Sérgio Silva passou a cobrir manifestações desses e de outros movimentos em São Paulo.
Devido ao histórico de Sérgio de cobrir levantes populares, no dia 13 de junho de 2013, em São Paulo, ele decidiu fotografar o protesto que mudaria sua vida. Neste dia, o fotojornalista levou um tiro de bala de borracha no olho esquerdo, vindo de um policial militar em um protesto contra o aumento da passagem. O tiro o deixou cego de um olho.
“Quando a polícia começa a tirar as bombas sem esses manifestantes provocarem nenhum tipo de ação violenta que justifique, um policial atirou há 10 metros de distância assim dos manifestantes. Eu falei ‘pô, eu não vou ficar aqui de maneira nenhuma’. Corri para sair daquela muvuca toda de gente e me escondi atrás de uma banca de jornal.”
O que começa como um protesto pacifíco, se torna um cenário de guerra. Segundo Silva, foram encontradas mais de 500 cápsulas de balas de borracha pelo chão. A serenidade e exatidão com que ele descreve esse momento faz pensar que em dez anos, essas cenas se passaram milhares de vezes em sua cabeça.
Não houve cumprimento de nenhum protocolo de conduta por parte da Polícia Militar. Ao invés disso, o momento histórico conhecido posteriormente como “As jornadas de junho” deixou 837 pessoas feridas de acordo com dados da ONG Artigo 19.
“Havia meia dúzia de cartazes, eram os jovens jogando cartaz e a polícia devolvendo com bala de borracha, bomba de efeito moral e gás lacrimogêneo. Se isso não é despreparo, eu não sei o que é.”
Seu tom de voz insinua dúvida, traz o questionamento se a ocasião se trataria de despreparo, ou se seria exatamente esse o objetivo da polícia militar.
Em meio aos gritos de “SEM VIOLÊNCIA”, e já com as vias aéreas cheias de gás lacrimogêneo, com sua blusa de frio no rosto, Sergio corre para uma banca de jornal na esquina da Avenida Ipiranga com a Consolação.
Ao perceber que os tiros e bombas diminuíram, ou aparentemente cessaram, Sérgio saiu da banca de jornal, já que de lá não conseguia ver nada do que estava acontecendo. E também na tentativa de fazer mais algum registro. No momento exato em que abaixa sua câmera para ajustá-la, é atingido.
“Eu tinha acabado de apontar a câmera para essa tropa que estava atirando nesses manifestantes, na hora que eu abaixei a câmera para olhar assim no visor: Eu aí sofri impacto no olho. Foi muito rápido. Saí cambaleando, pedindo socorro e já senti que meu olho estava estourado, eu não enxergava mais nada.”
Sérgio buscou ajuda, mas não houve qualquer socorro da polícia naquela noite. Com semanas na UTI, a família traumatizada com o ocorrido e após muitos exames ficou comprovada a perda da visão. O impacto da bala dilacerou seu olho e acabou com a estrutura do globo ocular. Hoje, Sérgio utiliza uma prótese.
O descaso do Estado e a falta de empatia não acabam, a violência vivida ganha um novo capítulo a cada ano que passa, alguém se responsabilize pela perda da visão do fotógrafo. Meses após o fatídico 13 de junho de 2013, Sérgio entrava com uma ação na justiça exigindo indenização do estado pelo ocorrido.
Em sentença de 2017, o juiz Olavo Zampol Júnior havia negado ao jornalista o direito a uma indenização por danos morais, afirmando que o ferimento foi “culpa exclusiva do autor ao se colocar na linha de confronto".
Dez anos depois, em nova audiência marcada para 29 de março de 2023, encontramos Sérgio minutos antes de entrar no fórum, o fotojornalista afirma que o que ocorreu com ele naquela noite vai além de si mesmo, se trataria de uma atentado à liberdade de imprensa. A audiência foi adiada naquele dia.
Remarcada para 26 de abril de 2023, o Tribunal de Justiça de São Paulo decide que não há provas, no processo, de que a lesão que cegou Sérgio foi causada pelo tiro de bala de borracha disparado pela PM. Esse foi o argumento do desembargador Rebouças de Carvalho.
O fotógrafo não perdeu só a visão. Perdeu oportunidades e foi obrigado a se adaptar à sua profissão. A ausência de seu olho é a lembrança cotidiana que na visão do estado brasileiro um homem preto de periferia será sempre o culpado.
“A violência do sistema judiciário é esse dedo na ferida que vai apertando, vai tornando essa dor devagar, lenta, torturante. São duas violências que se completam.”
Existe saída diante de tanta violência? A história de Sérgio Silva e as jornadas de junho fazem crer que a única formade escapar dela é correr antes que a bala encontre um alvo.